A arte de envelhecer: fissuras, subjetividade e disrupção

A exposição fotográfica “A Arte de Envelhecer – Dar Mais Vida aos Anos”, concebida por Sandra Ventura e que ficou aberta ao público até ao dia 1 de dezembro de 2024, no Museu da Farmácia de Lisboa, reuniu algumas qualidades que merecem ser aqui discutidas. Seja pela capacidade da expressividade artística em interpelar os sujeitos, como pela própria atitude crítica ao representar o corpo envelhecido, é possível notar como as obras presentes na exposição causam uma fissura necessária no tecido visual hegemónico contemporâneo, que se recusa a lidar com o envelhecer. Sandra Ventura evidencia que, por meio da arte, pode-se traçar estratégias de aproximação humana e distanciamento crítico, sem se deixar seduzir por reduções fáceis e estereotipadas do que significa passar pelo envelhecimento.

Passemos a alguns conceitos fotográficos envolvidos na exposição. Quando opta por realçar as rugas, ranhuras e relevos presentes na pele de seus retratados e retratadas, Sandra nunca o faz de maneira casual ou fetichista. A fotógrafa parece entender que, para além das expressões das pessoas mais velhas, há uma variedade belíssima de curvas e traços a adornar as mãos e rostos, numa geografia humana que dificilmente se descreve senão por meio da câmara obscura. Nesse sentido, é através do exercício meticuloso da profundidade de campo que a artista expressa os pontos focais, como as mãos que se envolvem no terço (Fotografia 1). Mais do que um efeito, é uma linguagem eleita “em benefício do olho/sujeito da enunciação” (Machado 1984, 117), que neste caso evoca uma proximidade com o momento da pessoa que reza, do rito, da comunhão. As mãos em primeiro plano não são uma escolha estilística, são a enunciação completa do trabalho de Sandra Ventura, a promover a humanização do corpo por meio de uma “fissura” encontrada na construção fotográfica. Fosse todo o quadro focado, não haveria a sucessão de planos e de jogos de leitura provocados pela sua composição.

Ao mesmo tempo, ao escolher os retratos, ocorre em suas obras uma “transferência de subjetividade (a supressão provisória do nosso próprio olhar para colocá-lo à mercê de um outro que dirige o nosso)” (Machado 1984, 95), pois não importa onde estejamos na sala, somos atingidos pelo olhar dos retratados, que nos impelem a uma reflexão sobre a passagem do tempo e sobre a existência humana retratada. A noção de alteridade no processo fotográfico só se completa quando se pensa no retrato e naqueles que interpretam as temáticas, as formas e as experiências do quadro – ou seja, quando se considera a experiência sensorial da receção de tais obras. 

As rugas e a pele, os contrastes físicos e por vezes emocionais que a fotógrafa capta (Fotografia 2), são fontes de exploração de como a luz incide sobre diferentes corpos – numa modalidade crítica que sai do comum observado na produção mediática do dia a dia para aterrar numa realidade instável (múltipla, e, por vezes, difícil), mas transformada. Ao perceber que os “corpos envelhecidos são cada vez mais vistos como uma disrupção do campo visual” (Martin 2015, 95), Sandra Ventura incorpora as pessoas retratadas num debate amplo e necessário, sobre a aproximação de segmentos variados da sociedade ao fenómeno do envelhecimento, pois não é como se dele se pudesse escapar – mas é notório que ele não só acontece de modos desiguais como é usado para segregar corpos e mentes. 

Saímos da exposição com a convicção de que o trabalho de Sandra Ventura expõe a velhice como deve ser vista: múltipla, diversa e complexa. A sua arte nos mostra que o envelhecimento está objetivamente nas rugas, nos cabelos brancos e na aparência envelhecida em geral, mas, sobretudo, está no olhar profundo de quem tem uma longa vida já vivida. É também pelo olhar que se transformará a perceção da velhice como uma fase integral das nossas vidas.

Autores:

Eduardo Prado Cardoso & Elizângela Noronha

Referências:

Machado, Arlindo. 1984. A ilusão especular: introdução à fotografia. São Paulo: Brasiliense.

Martin, Wendy. 2015. “Visual Methods in Ageing Research.” In Routledge Handbook of Cultural Gerontology, edited by Julia Twigg and Wendy Martin. Abingdon: Routledge.

EN

The Art of Ageing: Fissures, Subjectivity and Disruption

The photographic exhibition “The Art of Ageing – Giving More Life to the Years”, conceived by Sandra Ventura and open to the public until December 1, 2024 at the Lisbon Pharmacy Museum, brought together some qualities that deserve to be discussed here. Whether it was the capacity of artistic expressiveness to interpellate subjects, or the critical attitude in representing the aged body, it is possible to see how the exhibited pieces cause a necessary fissure in the contemporary hegemonic visual fabric, which somehow refuses to deal with ageing. Sandra Ventura shows that through art it is possible to devise strategies of human closeness and critical distance, without being seduced by easy and stereotyped reductions of what it means to go through ageing. 

Let us look at some of the photographic concepts involved in this exhibition. When the author chooses to highlight the wrinkles, grooves and reliefs present on the skin of her subjects, she never does so in a casual or fetishistic way. The photographer seems to understand that, beyond the expressions of older people, there is a beautiful variety of curves and features adorning hands and faces, in a human geography that can hardly be described other than through the camera obscura. In this sense, it is through the meticulous exercise of depth of field that the artist expresses the focal points, like the hands wrapped around the rosary. More than an effect, it is a language chosen “for the benefit of the eye/subject enunciation” (Machado 1984, 117), which in this case evokes a closeness to the moment of the person praying, of the rite, of communion. The hands in the foreground are not a stylistic choice, they are the complete enunciation of Sandra Ventura’s work, promoting the humanization of the body through a “fissure” found in the photographic construction. If the whole picture were in focus, there would not be the succession of reading possibilities and nuances provoked by its composition. 

At the same time, by choosing portraits, there is a “transfer of subjectivity (the temporary suppression of our own gaze to place it at the mercy of another who directs ours)” (Machado 1984, 95), because no matter where we are in the room, we are affected by the gaze of those portrayed, which prompts us to reflect on the passage of time and on the human existence portrayed. The notion of otherness in the photographic process is only complete when we think about the portrait and those who interpret the themes, forms and experiences of the framed ones – in other words, when we consider the sensory experience of receiving such works.

The wrinkles and skin, the physical and sometimes emotional contrasts that the photographer captures, are sources of exploration of how light falls on different bodies – in a critical modality that leaves the commonplace observed in everyday media production to land in an unstable (because multiple, and sometimes difficult) but transformed reality. Realizing that “old bodies are increasingly viewed as a disruption to the visual field” (Martin 2015, 95), Sandra Ventura incorporates the people portrayed into a broad and necessary debate about the approach of various segments of society to the phenomenon of ageing, because it is not as if one can escape it – but it is notorious that that not only happens in unequal ways but is also used to segregate bodies and minds.

We left the exhibition with the conviction that Sandra Ventura’s work shows old age as it should be seen: multiple, diverse and complex. Her art shows us that ageing can be seen objectively in the wrinkles, the gray hair and the general appearance of an old body, but above all it can be seen in the deep gaze of someone who has lived a long life. It is also through the gaze that the perception of old age as an integral phase of our lives will be transformed.

Authors:

Eduardo Prado Cardoso & Elizângela Noronha

References:

Machado, Arlindo. 1984. A ilusão especular: introdução à fotografia. São Paulo: Brasiliense.

Martin, Wendy. 2015. “Visual Methods in Ageing Research.” In Routledge Handbook of Cultural Gerontology, edited by Julia Twigg and Wendy Martin. Abingdon: Routledge.

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